ensayo
A palavra que se rabisca atrás das grades ou a literatura que foge das prisões
Fecha de Publicación: octubre 12, 2021
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A palavra que se rabisca atrás das grades ou a literatura que foge das prisões
Fecha de Publicación: octubre 12, 2021
Por Gaudêncio Gaudério, Vento Norte Cartonero
Correndo atrás dos meus sonhos foi que me perdi,
Neste labirinto sombrio de grades de ferro.
Edson Rodrigo de Prado
(Penitenciária Agrícola de Chapecó)
A emergência recente no contexto brasileiro de um corpus heterogêneo de vozes e de escritas do mundo presidiário é, sem dúvida alguma, um sinal inequívoco das explícitas e/ou silenciosas mudanças que vêm se registrando no cenário literário atual, as que, independentemente das vontades e dos gostos até hoje dominantes na cidade letrada, obrigam a reconhecer que a palavra escrita começa a ser assaltada por sujeitos e grupos inseridos nas margens humanas e sociais. Porém, a pesar de sua presença ser cada vez mais evidente nas tão variadas e atrativas prateleiras do mercado editorial, e de contar com um bom público leitor que as recebe e consome, a crítica acadêmica brasileira, de modo geral, adota a cegueira frente a sua existência. Quando se digna olhar os nomes e títulos que vão compondo o que se pode chamar de Literatura Carcerária (1)[i], em razão de traçar quadros abrangentes e panorâmicos ou balanços valorativos da produção atual, reitera suas fortes restrições para dar qualquer aval literário e estético às obras que transpõem as grades da prisão para conquistar um lugar no âmbito público. Nas alusões ligeiras e superficiais que se registram até o momento, no meio da massa amorfa de trabalhos acadêmicos que se produzem para dar conta da recente literatura brasileira, e nos que se faz referência via-de-regra às teses sobre a crise dos paradigmas teóricos e críticos modernos, fica muito patente que a desconfiança é absoluta em relação às escritas e linguagens de detentos e ex-detentos, ou de alguns profissionais artífices de ações solidárias na cadeia, que ganham corpo nas páginas impressas de livros e revistas ou nas páginas virtuais.
O paradoxo é gritante. Por um lado, registra-se a existência de uma série de obras, postas em circulação graças à mediação de agentes letrados ou de instituições públicas ou privadas, que levam ao plano da representação experiências individuais e coletivas no mundo do crime e/ou da cadeia, e que vão constituindo um corpus literário específico que se distingue, entre outras coisas, por recorrer a gêneros e códigos, recursos expressivos e processos discursivos de matizes e filiações diversas. Obras nas que cobram destaque a convergência do autobiográfico e do testemunhal, o encontro conflitivo e ambíguo da palavra escrita e falada, a vontade de projetar a dimensão pessoal e coletiva de algumas vivências extremas, a crença no poder catártico e simbólico da escrita para nomear os porões infernais da realidade humana, isto é, obras cuja relevância literária está atrelada de modo umbilical ao que Antônio Cândido chama de “espírito empenhado”, tão peculiar da literatura brasileira e latino-americana.
Por outro, nota-se a teimosa atitude da crítica acadêmica para sair do terreno canônico e observar aquilo que transita por outros espaços sob a etiqueta de literatura, como seria o caso então de livros e textos que aqui se agrupam sob o adjetivo de carcerária, ainda que ela adira sem restrições os postulados e as posturas dos sedutores estudos culturais ou as teses quase miraculosas da desconstrução. Um gesto que se carrega portanto de sentidos múltiplos justo quando se debate com intensidade questões fulcrais como a natureza e o caráter que hoje distinguem a literatura, seja para defender a transcendência e universalidade das expressões que realizam a verdadeira literatura ou para exaltar na era do pós-tudo e multiculturalismos vários as manifestações que a materializam. Assim, no harmônico quadro da literatura desenhado pela crítica acadêmica, sob os traços, algo confusos, é verdade, de certos modelitos convertidos em imperativos categóricos para poder manter a assepsia do campo e de palavras de ordem para incorporar todos os novos discursos identitários e de gênero, não aparece a figura do que precisamente desajusta, descentra ou descompõe o valioso cenário literário e que provêm das margens e periferias brasileiras.
Porém, em certos discursos críticos de sérios e preclaros investigadores acadêmicos, tão ciosos no respeito às exigências de produtividade impostas pelas agências financiadoras nacionais de pesquisa, se levanta a forte suspeita de que muito dos produtos que promove o diabólico mercado editorial sob o enganoso rótulo de literatura estão dirigidos somente a satisfazer o gosto mórbido do leitor. De um leitor pontual, é claro, aquele da padronizada e idiotizada classe média, cuja sensibilidade seria modelada pelos enunciados imagéticos que colocam em circulação os meios massivos de comunicação, segundo a premissa sociológica que se esgrime para chegar a tal suspeita. E como o que os meios sempre promovem são signos cuja gramática gera o vouyerismo em torno do que espectaculariza a violência, dito leitor estaria bem condicionado, à maneira pavloviana, para consumir aquilo que satisfaça seu gosto patológico pelo crime e o sangue. Assim, nas palavras de uma eminente crítica de reconhecida projeção acadêmica, cuja voz recolhe em boa medida a visão quase consensual dos que emitem opiniões em relação ao sucesso das obras que escapam das prisões, resulta atinado pensar pois que “a atração pela escatologia e a literatura dos presos talvez supra o prazer de violência do público” (2)[ii].
Pode-se concluir, então, que a projeção e repercussão literária de alguns livros escritos por presos, ex-presos ou agentes solidários aos presos, nos que se apresentam algumas das várias e banalizadas caras da violência cotidiana, responderia, segundo o iluminado saber acadêmico, às ardilosas estratégias mercadológicas que aciona a indústria editorial em plena consonância com a lógica disseminada da cultura de massa. Operação que abarcaria também, tal como assinala a crítica acadêmica com idêntica ênfase, o que se vem fazendo nos últimos anos em certas periferias urbanas por parte de pobres, favelados, operários, desempregados ou rapers, articulados quase todos no movimento que se auto-intitula de Literatura Marginal*. Em síntese, da perspectiva que fundamenta hoje o exercício de boa parte da crítica acadêmica brasileira, o repertório literário advindo dos sujeitos e grupos inseridos nas margens humanas e sociais cumpriria a simples função de alimentar e reforçar a curiosidade de um consumidor ávido por engolir imagens de degradação e violência.
Por isso, o foco de atenção crítica se volta principalmente para o que não está vinculado a modelos e gostos que respondam a possíveis artifícios comerciais. Ou, quando não se quer ficar fora das correntes teóricas e do pensamento contemporâneo, a mirada se fixa no que supostamente traduz o fenômeno pós-moderno sem perder o forte estatuto canônico da literatura. Em ambos os casos pretende-se defender ou incorporar as obras que podem ser reconhecidas, de acordo com a perspectiva ideológica de cada corrente crítica, por sua fatura e significação como portadoras de um autêntico valor literário e estético. Daí que se profiram desconfianças sobre determinados livros e discursos que se apresentam como literatura, mas que por razões de índole quase intuitiva, que descartam qualquer abordagem analítica prévia, a crítica não enxerga mais que como objetos criados para executar interesses mercadológicos. A suspeita leva a condenar em bloco escritas da prisão e das margens porque a crítica acadêmica tem, não há dúvida, bastante sabedoria e autoridade para distinguir o joio do trigo.
O parêntese aqui é necessário. Não é por coincidência que até hoje os parcos estudos sobre a Literatura Carcerária e a Literatura Marginal foram feitos de maneira quase exclusiva nas áreas acadêmicas da antropologia e da sociologia. Neles o que se aborda, preferencialmente, pela especificidade de tais disciplinas, são os aspectos que traduzem os processos identitários e as práticas simbólicas e sociais de sujeitos e grupos subalternos, e, em razão da relevância que têm nas suas obras, os tópicos estratégicos da violência e da marginalidade, as formas como a realidade e a vivência empírica das mesmas atravessa o duro cotidiano de tais agentes. De tal maneira, pois, os textos que essas literaturas oferecem se convertem em documentos de precioso valor para o estudo específico de rituais, práticas e hábitos do mundo periférico e marginal. Sem interessar para o caso o que diz respeito ao caráter singular de suas linguagens e à dimensão literária e estética que possam ter. E os artigos críticos nos que se aludem algumas obras em particular ficam restritos só a emitir assépticos juízos de valor que as situam fora do cânone por não serem a rigor Literatura, com maiúscula; ou, nos que se lhes dá uma atenção mais detalhada, a colocá-las em termos do que ilustram em relação às diferenças com o testemunho europeu, o da Shoah, para chegar à conclusão de que também podem ser consideradas parte da Literatura da Catástrofe, embora se entenda que a dimensão do trauma que as sustenta não tenha medida de comparação, quiçá porque a dor humana seja mensurável em virtude do sofrimento e número de mortos (3)[iii].
É a partir de tal vazio crítico que passo a formular aqui em termos bem sintéticos alguns pontos básicos da problemática que envolve a presença e a geografia da Literatura Carcerária, cuja constituição é materializada de modo pontual tanto pelos sujeitos e lugar de enunciação quanto pela temática dos discursos. Pode-se afirmar que, embora seus autores optem sobretudo pelas formas narrativas para organizar e relatar as dramáticas histórias individuais e grupais vividas dentro e fora da cadeia, aspecto que resulta revelador de uma vontade comunicativa, também empregam a palavra escrita, em virtude seja da participação em oficinas ou concursos promovidos em certas instituições carcerárias, para articular diversos tipos de discurso literário. Assim, quando se busca fazer uma aproximação inicial para observar os relevos do terreno, é fácil constatar de imediato que a Literatura Carcerária é assaz heterogênea, não apenas no simples sentido dos gêneros quase sempre híbridos que se mobilizam, mas também no das diversas linguagens formalizadas por seus autores em razão dos vínculos particulares que mantêm com as culturas letrada, popular e/ou massiva. Tal como ocorre também com a produção dos escritores que transitam livremente pelas ruas do mundo e em torno da qual se centram os olhares da crítica acadêmica para legitimar ou não suas propriedades literárias e estéticas.
Se a cadeia é o lugar promíscuo de bandidos e criminosos, de violentos e anti-sociais, de pobres e alguns remediados, de iletrados e alfabetizados, de seres que transgrediram a ordem social e moral e têm de ficar excluídos do convívio civilizado, segundo a judicial ou salutar ou míope mirada de fora, espera-se que dela só possa sair o que é inerente à barbárie humana. É a premissa tácita a partir da qual a famigerada crítica acadêmica, sem realizar nenhum esforço analítico, apenas vislumbra e assinala a suposta exploração e banalização da violência como traço característico da literatura carcerária. O problema é que, deixando de lado a obstinada visão ilustrada, quando se explora a cartografia do que se escreve nas ou sobre as celas da prisão, sob a rubrica de sujeitos que conhecem os labirintos internos de tal inferno, pode-se concluir que se trata de uma literatura que reúne autores de distintas origens e trajetórias humanas e sociais, concepções e práticas discursivas muito diferenciadas, projetos e propostas escriturais muito diversas, mesmo que se aproximem no que diz respeito às temáticas centrais abordadas por serem as mais ligadas à situação de reclusão. Na condição de presos ou de ex-detentos, de estar cumprindo ou de ter cumprido já pena por crimes e delitos cometidos, de réus inocentes ou culpados, dão forma então aos seus discursos fazendo uso do código letrado sobretudo para narrar os tormentos do corpo, as experiências extremas e os conflitos subjetivos que seu trânsito pelo mundo da cadeia produz; mundo que por sua vez está em contraponto com o da vida em liberdade e no qual se origina a causa primordial dos que vão transgredir suas leis e receber punição justa ou injusta. Às vezes será a convivência intensa de certos profissionais com os que sobrevivem atrás das grades, a partir de ações solidárias, a que irá motivar a tarefa narrativa para registrar a dimensão existencial de bandidos e criminosos.
Tais narrativas não são “lances contra a morte” que se fazem através da palavra escrita, e, ressalta-se, “cuja marca mais forte está no outro extremo –na precariedade, na pobreza, na transitividade”, tal como afirma outra das vozes autorizadas pelas hierarquias acadêmicas ao buscar chamar a atenção sobre as que são produzidas na prisão. Uma voz que, apesar de suas boas intenções, continua atrelada ao conhecido lugar comum da desconfiança e do preconceito, ao considerar que as produções carcerárias têm um valor notadamente mercadológico, por aquilo que ofereceriam em termos de espectacularização da violência, não obstante se reconheça que elas possam ter alguma “eficácia política” e “resistência crítica” (4)[iv], sem que se aluda em nenhum momento a qualquer relevância literária. Chega-se assim a uma conclusão crítica absoluta e definitiva ao projetar os núcleos temáticos mais relevantes da literatura carcerária como os responsáveis diretos de sua falta de dimensão estética. Por essa via a crítica acadêmica com seus silêncios, restrições e condenas assume uma clara posição ética, pois, muito longe de qualquer objetividade hermenêutica, procura a tudo custo preservar a boa saúde das adjetivadas altas literaturas.
Sem dúvida, há um dado histórico que precisa ser considerado aqui como um dos fatores que vão propiciar que a palavra escrita se projete de maneira cada vez mais visível como a voz literária dos que estão/estavam atrás das grades. Refiro-me ao chamado “massacre do Carandiru”, que foi o resultado da brutal ação policial no dia 2 de outubro de 1992 no que era o maior centro de detenção de São Paulo e do país e que acabou no criminoso assassinato de 111 presos. Sem entrar na análise das consequências psíquicas e humanas, dos desdobramentos políticos e jurídicos, das ações jornalísticas e das discussões éticas que o fato provocou, e ainda gera, não é possivel ignorar aqui que alguns anos depois, já na virada do século, o Carandiru se converte em objeto de muitas reportagens, crônicas, poemas, raps, músicas, pinturas e documentários, além de lugar de oficinas da mais variada índole. É, pois, no bojo de uma ampla atividade artística e cultural que se começa a escutar as vozes dissonantes de alguns escritores da prisão, vozes emitidas para dar o próprio testemunho sobre o que teria ocorrido por terem sido vítimas diretas ou indiretas de tal episódio, relatar as agressivas peripécias que implica a luta diária pela sobrevivência nas cadeias do país, registrar as memórias de quem mergulhou na delinquência e no crime e tem de cumprir sentença atrás das grades ou verbalizar sonhos de liberdade e de (re)inserção no mundo dos homens livres, isto é, para recriar assim suas experiências no território da literatura sob a premissa de que ela possibilita transcender ou neutralizar a dura realidade da prisão.
Chego, então, ao segundo momento das minhas breves considerações para inventariar nas linhas finais o que uma obra como Memórias de um sobrevivente, de Luis Alberto Mendes, coloca em pauta para uma possível leitura crítica, pois ela pode ilustrar alguns dos traços e problemas centrais que marcam a denominada Literatura Carcerária. Os dados para-textuais que acompanham a primeira edição já me alertam de que se trata de um “testemunho” sobre o percurso existencial que vive o autor “da infância até o crime e, deste, até a descoberta da literatura”, mas que “não é um livro de denúncia nem exatamente uma autobiografia”, embora a respectiva ficha de catalogação bibliográfica não deixe de contradizer tal afirmação, e que, além de estar preso na época em que se publica o livro, “o sobrevivente deste verdadeiro romance de formação nos oferece uma chance. A chance de nos conhecermos melhor” (5)[v]. É o que me leva a assinar sem maior temor o pacto de leitura e adentrar numa narrativa que vai reconstruindo numa linguagem fluida e sofisticada, cuja formalização revela que o sujeito da enunciação se insere na tradição letrada, as ricas aventuras do protagonista ao longo de sua infância e adolescência pobre e marginal, o próprio autor, seu ingresso no território do crime para realizar o desejo de se tornar bandido, algumas de suas participações em roubos e assaltos e confrontos armados com a polícia, suas diferentes detenções e consequentes condenas judiciais, suas fortes provações existenciais e vivências assaz extremas e degradantes dentro do espaço prisional, e, para completar o périplo heróico, o encontro salvador com o universo da letra impressa através dos livros que vão lhe tornar leitor e escritor.
Até antes do epílogo, no qual se explicitam as razões que impulsionam o ato de escrever e o papel da cultura como mecanismo para desenvolver a avaliação de si mesmo, alguém cujo corpo, experiência e subjetividade estão impregnados pela violência cometida e sofrida, observa-se que a estrutura e o fluxo narrativos de Memórias de um sobrevivente resultam similares aos de certos romances modernos, ainda que o leitor saiba que não se trata de uma ficção. Tal proximidade coloca então uma primeira questão sobre a racionalidade discursiva de uma obra que se movimenta com força entre o testemunhal, o autobiográfico e o romanesco, não porque implique só a indefinição ou ambiguidade em termos de gênero, mas porque permite diversas leituras por parte de seus receptores potenciais, com o que toda sua relevância simbólica e significações literárias se multiplicam, revelando assim a complexidade que comporta enquanto construção textual. Como narrativa, pois, oferece uma visão da realidade humana e social brasileira que desvela a trama da violência que perpassa e se manifesta em todos os cantos da vida urbana e que se concentra com feroz intensidade no âmbito das prisões. A obra brinda o testemunho de um sujeito que espalhou e sofreu a violência como bandido e detento ao longo de quase toda sua vida; só que, como se registra uma clara identificação entre autor-narrador-protagonista, na medida em que vai se acompanhando o desenrolar da história começa a se revelar o tecido autobiográfico de quem se apresenta na pessoa gramatical de um eu nominal; porém, numa terceira instância a tonalidade das ações narradas vai gerando a sensação de que o herói que se enuncia desdobra-se numa vívida figura romanesca.
Em tal sentido, um dos aspectos mais interessantes que a leitura crítica da obra tem de encarar é o relacionado à forma como a narrativa opera para ganhar a confiança de seu leitor potencial. Sem dúvida, trata-se da polêmica questão que envolve em diversos graus o que se define, segundo o enfoque teórico usado, como: “verossimilhança”, “efeito de real”, “illusio”, “efeito de verdade”, etc. Porque ao ser um discurso que se projeta como testemunho, com muito de autobiográfico e algo de romance de formação, resulta muito pertinente concluir que, se ele mantém um forte vínculo referencial, o vital compromisso com a realidade empírica, embora quase nada do que se relate seja passível de verificação, até porque grande parte da matéria representada pertence à trajetória de um ser “marginal”, isso não descarta a possibilidade de que certos elementos da história pertençam à imaginação do autor. E aqui não há como deixar de se considerar que o processo enunciativo é a construção de um sujeito e de uma voz no plano textual, que o ser empírico se transfigura num ser que é pura palavra, e, para fechar o artifício, que esse ser de pura palavra se instala num presente para resgatar do passado que se arquiva na memória um ser que não existe mais. É aí que reside o processo de formalizar no discurso escrito a representação de um percurso existencial que, das escuras e estigmatizadas margens humanas e sociais, emerge como obra narrativa que se desdobra assim em significações simbólicas e literárias diversas. Por essa via pode-se compreender e interpretar a ressonância de um livro que, contra a cegueira e os preconceitos ideológicos de boa parte da crítica acadêmica brasileira, nos fala que atrás das grades se geram e/ou operam processos de descoberta, apropriação e indagação da palavra escrita que hoje se inserem no plural e amplo campo da literatura, sem a antiga e obrigatória letra maiúscula.
Fecho minha reflexão reafirmando que a Literatura Carcerária é ainda um território não explorado, cuja heterogeneidade não permite nenhuma generalização nem qualquer juízo redutor, e muito menos uma idealização paternalista que obvie todas as tensões e ambiguidades de suas expressões respectivas. Na verdade, nela convergem práticas e vozes que, com maior ou menor ou até sem nenhum domínio da escrita, vão arquitetando uma série de manifestações, atravessadas quase sempre pelo anseio de querer traduzir experiências ligadas à sobrevivência corporal e subjetiva nas margens mais degradadas da vida social, cuja razão é a vontade vital de concretizar algum tipo de reconciliação com o mundo através da palavra escrita. Isolados da vida que transcorre fora das grades, alguns presidiários brasileiros, e vários de seus ex-companheiros, letrados e não letrados, jovens e velhos, fazem uso nos últimos anos da caneta e do papel, pois o computador ainda é uma arma proibida, para traçar rabiscos que desenham a imagem nada harmônica dos subterrâneos humanos e da sociedade brasileira. E, mesmo que sejam vistos do lado de fora com absoluta suspeita pelos olhos cada vez menos ilustrados do reino acadêmico, quiçá porque não pediram licença para escrever, vão constituindo um instigante e perturbador corpus de obras que, junto com outras de amigos solidários, transita pelos espaços livres de leitores que, sem estar presos a regras canônicas, se interessam por outras formas de literatura. Por isso sua existência se converte num desafio ético para a crítica na medida em que obriga a revisar os próprios critérios de abordagem para poder dar conta de sua especificidade como obras de linguagem e representações de natureza simbólica e literária.
*. Trata-se de um movimento que surgiu na periferia da cidade de São Paulo a finais do século passado sob o impulso e articulação do escritor Ferrez, morador e referência cultural do bairro Capão Redondo na zona leste da capital paulista. A hoje extinta revista Caros Amigos dedicou a começos da década passada quatro entregas exclusivas com coletâneas de textos de autores de diversos lugares do país. E até hoje alguns dos integrantes seguem produzindo literatura e promovendo projetos culturais em diverso bairros periféricos paulistanos.
1.[i] Alguns dos livros escritos por pessoas privadas de liberdade que se podem agrupar sob a referida denominação são: Autores diversos: Letras de liberdade (2000); Esmeralda do Carmo Ortiz: Esmeralda, por que não dancei (2000); Sandra Maria Hezer: A queda para o alto (2001); Jocenir: Diário de um detento: o livro (2001); Luis Alberto Mendes: Memórias de um sobrevivente (2001), Tesão e prazer. Memórias eróticas de um prisioneiro (2004) e Às cegas (2005); Sobrevivente André du Rap: do massacre do Carandiru (2002); Hosmany Ramos: Pavilhão 9 – Paixão e morte no Carandiru (2002); Humberto Rodrigues: Vidas do Carandiru. Histórias reais (2002); Clébio Ribeiro: Quando as lâminas cortam (2005); Vários: Textos no cárcere (2006). A tal lista se devem acrescentar os do médico Drauzio Varella: Estação Carandiru (1999) e do jornalista Antônio Carlos Prado: Cela forte mulher (2003). E ainda os que eu mesmo editei com o selo da Vento Norte Cartonero: Damião Silva dos Santos: Odisseia no hospício (2017) e Predestinado a Sobreviver (2019); Monique Ariel: Tudo por hoje (2019) e Viviane da Conceição Lima: Apesar de tudo (2019).
2.[ii] Cfr. Vozes da prisão In: Revista Cult, No 59, São Paulo, 2002
3.[iii] É o que se pode verificar, por exemplo, nos trabalhos de Márcio Seligmann-Silva e outros autores que seguem as teses propostas por ele. Cfr. História, Memória, Literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003
4.[iv] Cfr. Eneida Leal Cunha: Narrar ou morrer (sobre vivências do sistema penitenciário brasileiro) In: Revista Semear, No 7, Rio de Janeiro, 2002
5.[v] Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001